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Último Texto

Dignidade

Não sou digno que a felicidade sorria para mim. Perceba que eu disse que não sou digno e não sou merecedor. É que a felicidade é fim último de todos e todos, sem exceção a merece. Mas ser digno de felicidade é diferente. Só é digno da felicidade aquele que possui bravura. É aquele que não tem medo dos nãos e das portas fechadas. Aquele que cria as condições ou, pelo menos, tenta criar os meios de atingi-la.  A felicidade é passiva. Você quem deve ir atrás dela e não esperar que ela aconteça. A felicidade se constrói enquanto se vive, não é um estado de graça, que uma vez atingido, permanece. Ela é como a própria vida. Ela até paira por nós, mas só de fato vive àquele que escolhe os próprios caminhos.  Só é feliz quem vive. Só vive quem é feliz. Os demais, se contentam com a efêmera sensação de ser feliz, só porque, num dia de céu claro, um leve sorriso foi visto no espelho.

Diálogo da Madrugada

As três da manhã ouço o som de uma corda de violão se partindo. "Tun". Acordo, olho no relógio e pelo horário logo penso: "espero que não tenha um espírito mexendo no meu violão". Logo ouço o som da madeira escorregando pela parede. "Ora, isso por acaso é hora de defunto tocar?". Enquanto penso isso, logo me vem a sensação: "não olhe pra trás...". Cerro os olhos, cubro-me dos pés até a cabeça.

Coberto me sinto protegido. Certifico-me de que nenhuma parte do meu corpo encontra-se do lado do fora, caso contrário, o espírito pode contestar minha proteção e abrir processo no tribunal dos espíritos reinvindicando a vez de me puxar o pé. É assim pelo menos que imagino que se dê o processo. Humanos e espíritos deliberaram entre si e chegaram ao consenso da criação desse tribunal. 

- "Estarão protegidos todos aqueles que, fazendo uso de algo que os cubra por inteiro, evite que qualquer parte do corpo esteja exposta, no momento da visita do espírito. Caso contrário, este poderá pleitear a vez de cometer os sustos que julgar necessário, desde que não mate o indivíduo de susto, para que este possa espalhar a história de que foi assombrado e se torne motivo de chacota entre os viventes".

Feito esse parêntese, voltemos a história.

Coberto, ouço uma voz sussurrar:

- Charlito, Charlito... Tá acordado?

Silêncio.

- Charlito, Charlito... Olha aqui, sou eu... Psiu, eu sei que você tá acordado.

Coração acelerado. Pela voz, não reconheço quem seja. Desencubro a cabeça. Na janela, ninguém. Na porta, ninguém. Viro a cabeça lentamente em direção a parede. Não vejo ninguém. "Enlouqueci? Tô sonhando?" Penso.

- Sou eu aqui, óh! 

Pasmo, olho fixamente para o violão. Não consigo acreditar que ele está falando. Concluo: enlouqueci. Penso que ao amanhecer irei direto ao posto de saúde buscar o encaminhamento para internação na ala psiquiátrica mais próxima.

- É, eu sei. Parece loucura, né? Mas sim, eu tô falando e você não enlouqueceu. Ainda.

- Eu nem bebo pra tá vendo coisa. Com certeza isso é só uma paralisia do sono que não tem paralisia e o monstro é o violão. 

- Réréréré. Ri o violão. Eu rio em ré. Explica.

- O que foi que aconteceu pra você me acordar às 3 da madrugada? Entro na onda da loucura que se instalou no recinto.

- Tenho pensado em nossa história, sabe? Refleti, pensei, matutei, reconsiderei, analisei. Cheguei a conclusão que a gente precisa terminar.

- Oi? Rárárárá. Eu rio em rá. Eu realmente tô loucão. Tô conversando com meu violão e ele tá terminando comigo. Isso só pode ser o excesso de café derretendo meu cérebro.

- O problema não é você, sou eu. Insiste o violão. Você é legal e tudo, mas não me sinto valorizado. Responde o instrumento, ligeiramente com pena.

- Não se sente valorizado? Do que é que você tá falando? Esses dias eu não troquei o kit de tarrachas e o encordoamento? Respondo, indignado, ainda pensando em como é que eu tô argumentando com meu violão.

- Não é desse valor que tô falando, cara. Você até que cuida mais ou menos bem de mim, mas é que... Bem... Você não sabe tocar. Eu quero ser um popstar e quando você me pega... Sinto até gastura.

- Ora, não sei mesmo tocar, tô aprendendo. Ninguém nasce sabendo e é preciso um instrumento por onde começar. Para sua sorte ou seu azar, calhou de ser você o meu.

- Eu sei que não sou o primeiro, tá? Você acha que eu não escuto as conversas? Sei o que aconteceu com o que veio antes de mim. Uma grande tragédia. Mas eu quero me sentir útil, cara. Quero ser reconhecido! Responde o violão com o que seria com certeza um brilho nos olhos, se ele tivesse olhos.

- Em minha defesa, o primeiro eu vendi. A tragédia não se deu em minhas mãos. Respondo, me defendendo.

- Eu ouço as músicas que você ouve. Lindas músicas, poéticas, cheias de reflexão e de amor. Músicas que conquistam o público, que ao som do violão, só do violão, já são uma obra prima. Vejo você abrir as cifras dessas músicas, me pega no canto empoeirado, passa os dedos sobre as cordas e eu penso: agora vai! Mas nunca vai. O máximo que sai é um "sabão crácrá".

- Acabou de dizer que queria ser um popstar. Mamonas foi um fenômeno arrebatador, faz sucesso até hoje. Respondo, triunfante.

- E você acha que eu não sei que era tocada na guitarra? Eu sou uma piada pra você? Responde o violão, zangado.

- Talvez você tenha um ponto. Mas o que posso fazer? Eu não sei tocar e tô começando achar que não aprendo porque meu próprio violão tá de má vontade comigo.

- Você aprende por osmose? Acha que só vendo vídeos no YouTube vai aprender alguma coisa? Nem ritmo você treina. 

Um som de cordas tremendo começa a soar no quarto.

- Olha aí, fiquei nervoso. Tô me desafinando todo. 

Tun. Ouve-se um barulho de corda se partindo.

- Óh, céus!!! Lá se foi a sol! Grita o violão mostrando a corda quebrada.

- Calma, cara. Não precisa se estressar, vamos manter o tom. Esse estresse todo só vai dá prejuízo. 

- Então é isso. Minhas cordas agora ficaram todas tensas. É o nosso fim!!!

- Pera, violão! Eu vou repor a corda que quebrou, vou comprar um curso de violão e vou usar todo seu potencial. Assim que eu estiver pronto, a gente se apresenta para os meus familiares e daí pra frente, quem sabe o que pode acontecer?

- Você promete? Pergunta o instrumento com possíveis lágrimas nos olhos, caso ele tivesse lágrimas nos olhos.

- Prometo!!! 

- Vai ficar a minha música favorita?

- Posso aprender. Qual é?

- Show Das Poderosas, Anitta.





Texto por: Charlito Pimenta

Comentários

  1. Esse violão já tá querendo demais também 😂😂😂

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  2. Parabéns Charles, muito bacana e criativa a sua escrita

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