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Último Texto

Dignidade

Não sou digno que a felicidade sorria para mim. Perceba que eu disse que não sou digno e não sou merecedor. É que a felicidade é fim último de todos e todos, sem exceção a merece. Mas ser digno de felicidade é diferente. Só é digno da felicidade aquele que possui bravura. É aquele que não tem medo dos nãos e das portas fechadas. Aquele que cria as condições ou, pelo menos, tenta criar os meios de atingi-la.  A felicidade é passiva. Você quem deve ir atrás dela e não esperar que ela aconteça. A felicidade se constrói enquanto se vive, não é um estado de graça, que uma vez atingido, permanece. Ela é como a própria vida. Ela até paira por nós, mas só de fato vive àquele que escolhe os próprios caminhos.  Só é feliz quem vive. Só vive quem é feliz. Os demais, se contentam com a efêmera sensação de ser feliz, só porque, num dia de céu claro, um leve sorriso foi visto no espelho.

Cuidando de Longe

    Terça-feira, seis horas da manhã. Do lado de fora do quarto um barulho de algo pesado caindo no chão. Deitado na cama, imagino que mais uma vez o pavão ou o peru do vizinho pularam pelo muro, e desequilibrado por ter caído em cima de alguma caixa ou dos descartáveis, estabacou-se no chão. Este seria meu primeiro dia de férias, dia que eu poderia dormir até tarde, mas a combinação do meu relógio biológico com as travessuras da ave da vizinhança, me acordam antes mesmo dos primeiros raios de sol atravessar a janela.
    A minha noite não havia sido das melhores. A insônia me visitou até que o cansaço a vencesse e, por puro esgotamento, eu caísse no sono. Na véspera eu havia me despedido em definitivo daquela que meu coração escolheu para amar e numa mistura de alegria, por ter tido a oportunidade de experimentar o amor que só havia conhecido através de livros e do cinema, e tristeza, por ter que dizer adeus a essa mesma oportunidade, passei o dia lembrando, relembrando e recriando imagens dela sorrindo pra mim, das vezes em que me senti completamente especial simplesmente por sentir que ela me amava.
    Eu faria de tudo para vê-la feliz. Sendo assim, a vida, claro, deu seu jeitinho e logo nossos caminhos deixavam de ser o mesmo. Por mais que me doesse o peito e me dilacerasse a alma, eu teria que deixá-la partir. Junto dela eu aprendi que amar nem sempre significará estar presente e que muito além de falar, gestos transformam muito mais os sentimentos de alguém. Eu a queria comigo, mas seria egoísta de minha parte propor que ela deixasse de seguir seus caminhos para ficar. Por mais que fisicamente não estivéssemos juntos, eu sempre estaria com ela e ela sempre estaria comigo. Estaremos sempre um com o outro, mesmo que fique apenas oculto em nosso subconsciente. E eu sempre apoiarei as suas escolhas, pois meu grande encanto sempre será o sorriso nos teus lábios, mesmo que eu não possa vê-lo.
    Do lado de fora da porta o barulho persiste. Muito além de objetos caindo no chão, escuto sons que se assemelham a interjeições de surpresa ou confusão. Não era um bicho. Ou eu estava sonhando ou um homem acabava de invadir a minha casa. Isso mesmo: numa terça-feira, às seis da manhã, um homem estava invadindo uma casa. Já era absurda a invasão, mas o horário fez tudo ser ainda mais inadmissível. Quem acorda de madrugada pra assaltar uma casa?
  Procuro no quarto alguma coisa que eu pudesse usar para me defender, mas como um bom despreparado que sou, não tenho nada que possa ser usado como porrete, e como não poderia sair desprotegido, pego o primeiro tênis que me vem a frente. O quê? Era isso ou eu aprendia a lutar entre os cinco passos que separava a cama da porta. Tremendo de coragem (tá, talvez fosse medo, mas a história é minha, então eu era corajoso) abro a porta apontando o tênis.
    Deparo-me com um hippie me olhando confuso. Cabelo longo, barba com costeletas grandes, uma tira amarrada na testa, calça boca de sino, uma blusa com estampas exotéricas e óculos escuros. Não sei se ele ficou confuso por não esperar que houvesse alguém em casa ou se por eu estar usando um tênis pra me defender. Uma vez absorvida a confusão, ele pergunta:

    - Onde eu tô?
    - Na minha casa - eu respondo.
    - E onde fica sua casa?
    - Na rua? - eu pergunto, confuso.
    - Qual cidade é essa? - ele pergunta de volta.
    - Tá chapado, amigo? - eu pergunto, mais confuso ainda.
   - Eu não faço ideia - ele responde - eu estava fazendo uns testes na máquina, uma luz brilhou, um estrondo e tchanran, vim parar aqui.
   - Meu Deus! Essa droga que você usou nessa festa a fantasia não te bateu muito bem, hein? - Eu respondo.
  - É sério, meu compadre. A máquina parece ter funcionado! Eu viajei no tempo! - ele grita com bastante euforia.
  - Cara, tu viajou foi na maionese. Que viagem no tempo o quê? Tá fantasiado de hippie, chapado, invadindo propriedade privada. Vou é chamar a polícia - respondo levemente irritado.
   - É sério, meu. Um amigo meu arrumou uma máquina, dizendo que ela viajava no tempo. Num primeiro momento eu achei que ele estava chapado, assim como você pensa de mim agora, mas aí ele me pediu pra fazer uns pequenos testes, como se rebobinasse uma fita cassete e aí eu vi a gente (eu e meu amigo) tendo a mesma conversa de antes de eu mexer na máquina. Eu devo ter apertado alguma coisa errada e vim parar aqui - ele explica com um entusiasmo de quem não acredita no que tá falando ao mesmo tempo em que acredita.
    - Me parece que o baque emocional que sofri nesses últimos dias está me fazendo alucinar ou talvez eu esteja sonhando. Então você é um viajante do tempo e escolhe Montes Claros, em outubro de 2022 pra viajar. Debaixo da minha casa tem algum tesouro escondido e vocês descobriram viajando no tempo?
    - Você não prestou atenção no que falei, né? - me responde o viajante do tempo, desaforado.
    
    Então começa toda uma tentativa da parte dele pra me convencer que ele de fato viajou no tempo e veio parar sem querer na minha casa. Embora fosse impossível de acreditar na história que eu ouvia, aos poucos, talvez pelo cansaço, fui me deixando convencer de que ele realmente viera do passado e por um grande acaso, veio parar na minha porta.
    Em um ponto da conversa, ele me interrompe e pergunta:

    - Você disse que sofreu um baque emocional forte e por isso achou que estivesse alucinando. O que foi que houve?
    - Eu não aprendi dizer adeus, mas precisei deixar ir a mulher que tanto amei. Não gostaria de falar a esse respeito, se você não se importa.
    - Fui eu quem compôs essa música - ele responde.
    - Não aprendi dizer adeus? Sério? - pergunto de volta, surpreso.
   - É. Mas é brincadeira, não fui eu. Mas conheço quem compôs. Triste, mas boa de ouvir. Queria eu inspiração para falar de amor assim, de maneira poética, de modo que a minha música sobrevivesse ao tempo.
    - Essa minha história de amor, nas mãos de um bom escritor ou roteirista, dá um filme lindo. Triste, dependendo de como se olha, mas bem feliz também. É a melhor das ficções porque é real. Não há nada mais poético no mundo do que viver sentimentos reais. Conexões reais. Hoje é tudo tão conectado, mas tão distante, tão artificial. Ter vivido esse encontro de almas me faz sentir privilegiado, apesar dos pesares.
    - Como assim tudo tão conectado? Essa parte eu não entendi.
    - Ah, eu esqueci que na sua época mal tem celular. Enfim coisas do tempo moderno, acho que você vai entender quando voltar a viver na sua linha do tempo.
    - Tá, mas me conta essa sua história, quem sabe não vem dela a inspiração pra minha música?

    Então começo a contar para o hippie do tempo a minha história. Enquanto transformo em palavras as cenas, os sentimentos, os pensamentos, os sorrisos, as poesias, as vontades, vou revivendo cada momento como se estivesse acontecendo naquele exato instante. O coração acelera, o medo às vezes aperta, a apreensão e os sorrisos, tudo me é tão nítido e tão real enquanto falo, que escorrem as lágrimas agridoces pela mistura de alegria e perda que me aperta o peito.
    Enquanto conto minha história, rica em detalhes, para quem sabe ele possa extrair do menor dos símbolos a inspiração que tanto precisa, ele me interrompe questionando:

    - É nessa parte que vocês ficam juntos?
    - Não, não... 

    E assim segue o meu relato. Uma lembrança doce e viva de algo inesperado que vivi e que me preencheu e me fez novo homem. Um homem que em cada gesto, em cada atitude, em cada pensamento, tenta se fazer digno e merecedor da pureza do sentimento que experimentei. Não é uma história de amor clichê, embora possua alguns dos clichês, porém, não desemboca no final que todo mundo espera. É simplesmente real.

    - Antes dela ir eu disse: "tô te cuidando de longe, tô te amando do meu canto. Diga que está feliz que daqui eu vou me virando" e cada um seguiu seu caminho.
    - Cara, é isso. Essa frase era tudo que eu precisava. Só preciso voltar para os anos setenta, escrever a música e perpetuar a poesia na história da humanidade. Preciso ir. Adeus, amigo.

    Ele se levanta e sai correndo. Aparentemente, não possuía nenhum apetrecho que permitisse que ele viajasse no tempo, o que me fez concluir que ele era maluco e talvez eu fosse mais maluco do que ele, afinal de contas, levei a loucura dele a sério. Mas alguns minutos depois, começou a tocar na vizinhança uma música e embora eu não me lembrasse de já tê-la ouvido não me era estranha, parecia que eu já havia ouvido muitas vezes. Não era a grande poesia que ele pintou que seria quando teve a epifania que o fez sair correndo, mas trazia um pouco da essência da minha história. E assim, na voz de Israel Novaes, sempre que ouço "cuidando de longe" lembro-me da mulher que transformou o meu ser. E do hippie maluco que viaja no tempo.


Texto de Charlito Pimenta.
    

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