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A Casa

No alto daquele morro havia uma casa abandonada. Vozes eram ouvidas sussurrando e gemendo. Luzes brilhavam nas janelas, morcegos voavam pelos quintais e, nos jardins, borboletas-bruxas sugavam todo fonte de vida que existia nas flores. Nenhum ser humano tinha coragem de se aproximar dessa humilde casa abandonada. Às três da manhã, ouvia-se uivos sombrios e miados que pareciam vozes pedindo socorro. Ninguém sabia dizer porquê, mas aquela casa era o lar de todos os gatos pretos da região. Algumas pessoas diziam que ao redor daquela casa, mesmo durante o dia, tudo era escuro. Ela parecia ter saído de um livro de terror.

Um dia, nosso aclamado herói resolveu por a prova a lenda que circulava pela cidade: de que aquela era uma casa mal assombrada. Ele não era o mais corajoso dos homens que já vivera naquela cidade, mas não se conformava de que uma simples casa era temida por toda uma população. Estava decidido: iria visitar a casa. Seus amigos, achando graça daquilo, insistiram que, já que ele estava disposto a provar que a casa era só uma casa, que a visita deveria acontecer na madrugada, horário em que os uivos se ouviam e olhos brilhantes cintilavam nas janelas. Com medo encravado em todos os ossos, nosso herói aceitou o desafio de ir desarmado e solitário pela madrugada.

O dia escolhido: Primeiro de novembro. Motivo: dia de Los Muertos, na tradição mexicana. Horário: meia noite.

Chegada a data e o horário, alguns amigos acompanharam nosso herói até o pé do morro. Nenhum deles tinha coragem de ir até a casa, nem mesmo de chegar alguns metros de distância. Temiam o desconhecido. Desejaram-lhe sorte. Abençoaram-lhe nas mais variadas crenças possíveis. Ficaram a olhar, incrédulos, esperando o momento em que nosso herói iria desistir da tola ideia de ir até o lugar que a região inteira sabia que era amaldiçoado. Se surpreenderam ao notar que, nem sequer uma vez, ele olhara para trás.

Enquanto subia, nosso herói se perguntava porque estava fazendo aquilo. Nada iria mudar. Se ele visse algo sobrenatural lá, ninguém iria se surpreender. Talvez não acreditassem caso não houvesse nada de mais naquela casa. Estavam tão acostumados a acreditar nas lendas e relatos de pessoas que nunca estiveram lá, que abrir mão disso para considerar àquela casa apenas uma casa estava fora de questão. As mazelas da cidades eram atribuídas a maldição lançada pela casa, se ela for somente uma casa como outra qualquer, no que poderiam jogar a culpa? Em si mesmos?

Trinta minutos depois, estava nosso herói diante da porta de entrada. Um vento brando soprou, abrindo a porta. Um calafrio. Nosso herói pensou que talvez toda a gente estivesse certa, era conveniente demais um vento soprar justamente quando parava em frente a porta da casa. Rechaçou esse pensamento, afinal de contas coincidências acontecem o tempo todo na vida. Entrou. Era uma noite sem luar, portanto, só havia escuridão. Um par de olhos brilhou no fundo do cômodo. Ouviu-se um ronronar. É só um gato, ele pensou. Nas escadas mais alguns pares de olhos se fizeram presente aumentando a sensação constante de se estar sendo observado. A pele arrepiou. Seus olhos demoravam a se acostumar com o escuro. Ouviu uma voz.

- Ei, quem é o homem bravo que ousa explorar essa casa abandonada? O que te trouxe aqui? Falou uma vez com um tom de sorriso sarcástico.

- E... Eu... Bem... Eu não sei muito bem o que vim fazer aqui. Só queria... Não sei... Só queria... Tentou falar nosso herói.

- Provar pra todo mundo que não há nada a temer. Pois se enganou. Disse a voz com uma risada maléfica.

Nosso herói ficou paralisado. Não conseguia sair do lugar, mal respirava. Se sentia preso. Suava. Ouviu-se um uivo estridente e longo.

- Relaxa, bravo homem. Todos que ousam entrar aqui saem daqui transformado. O lugar parece... Bem... Abandonado, digamos. E talvez realmente esteja. Olhe em volta.

Uma luz se acende. Os gatos que estavam na escada pulam para o cômodo escuro. O vento cessa. As janelas se fecham num baque. Os morcegos saem por uma abertura na porta. Com a luz acesa, a casa é menos assustadora, mas se revela como precisando de manutenção. Há mofos pelas paredes, infiltração no teto, a mobília está velha e gasta.

- Você acha essa casa aconchegante e confortável? É um lugar onde viveria e convidaria outros para visitar? Perguntou a voz, que apesar da luz acesa, não se mostrou ao nosso herói.

Ele pensou. Não era tão ruim como parecia de longe. Tampouco tão acabada como era de se esperar de uma casa abandonada. Parecia que de alguma forma, ela recebia algum cuidado, mas realmente não era um lugar onde se viver ou conviver.

- Bem, eu não viveria aqui ou traria alguém aqui, se ela fosse minha. Talvez num momento de necessidade extrema, mas acho que numa situação normal do dia a dia, não usaria essa casa. Respondeu nosso herói.

- Interessante... É quase sempre a resposta que recebo. Falou a voz. O que é uma grande mentira.

- Oi? Mentira? Como você pode saber uma coisa dessas? Nosso herói respondeu indignado.

A voz sorriu. Uma risada longa, cheia de ironia, finalizada com um suspiro de lamento.

As luzes se apagaram. A escuridão e aparência sombria da casa voltaram. Uivos no quintal, gatos faziam sons que pareciam pessoas angustiadas. Goteiras se fizeram ouvir. Era choro?

As luzes se acenderam novamente, e de frente ao nosso herói, apareceu um espelho.

A voz falou.

- Será que você consegue se ver no espelho? Tem coragem de encarar a imagem que reflete?

Silêncio. Só era possível ouvir o coração bater.
Um passo. Dois passos. Três passos. Quatro passos. Um gemido. Luzes se apagam.

Mesmo na escuridão, é possível ver o espelho. Olhos se arregalam. O corpo começa a tremer. Tudo é muito nítido apesar de nada poder ser visto no escuro.

- Não tem pra onde fugir. Pelo menos se quiser chegar a algum lugar. Olhe no espelho, o que você vê? Perguntou a voz. Agora, mais reconhecível do que nunca.

- Eu vejo você. Respondeu nosso herói.

- E quem eu sou? Perguntou a voz.

- Você sou eu.

Trovão.

O reflexo sai do espelho, numa aparência fantasmagórica. Olheiras espessas, olhos fundos, sem brilho. A expressão melancólica.

- Sou eu quem assombro essa casa? Pergunta nosso herói.

Risos.

- Você assombra sua própria vida. Responde o fantasma. Esse morro é mágico. Não porque possui uma casa mal assombrada. Ele é um espelho para si mesmo. Todos àqueles que olharam para cá e foram embora dessa cidade, não o fizeram porque se assustaram com o que viram. Não. Viram aqui beleza e fartura. Oportunidade. Partiram porque não temiam a si mesmo e o desconhecido. Foram enfrentar o mundo. Todos vocês que olham pra cá e veem assombrações, são pessoas que não estão nem aí pra si mesmas e temem enfrentar o mundo. Vocês tem medo da vida. Escondem-se atrás de desculpas e autopiedade. Estão fadados a estagnar. Sempre que olham para o futuro, o amaldiçoam. Por isso vocês vêem essa coisa grotesca. É a imagem que têm de vocês mesmos.

Chuva pesada cai no telhado. Pranto?

As luzes se apagam.

Sem saber pra onde ir, nosso herói sai da casa. Ao sair, se depara com algo extraordinário. O caminho de onde veio já não é mais o mesmo. Não vê mais uma estrada encrustada no morro, com apenas uma direção.

Agora ele é um caminho bifurcado.

Qual caminho seguir? 

O que o leva a segurança do conhecido ou amedrontador desconhecido?

Comentários

  1. Parabéns pelo texto! Muito bem escrito!

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  2. Me identifiquei com o eu lírico! Só não teria a coragem para ir até a casa!

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