- Puta que pariu. Cê só pode tá de brincadeira. Não tem base um trem desse não. Eurípedes gritou se olhando no espelho.
Não era a primeira vez que criara expectativas desencontradas da realidade observável e, por essa razão, encontrava-se mais uma vez desiludido, pronto para desistir de vez dessa ideia de que encontraria o tal amor de sua vida.
Eurípedes não conseguia conceber como as variadas filosofias de vida podiam coexistir ao mesmo tempo. Se por um lado, quem arrisca não petisca, por outro quem vai com muita sede ao pote fica sem água. O tão falado equilíbrio, para ele parecia não existir.
- Se eu vou com calma, analisando pós e contras, refletindo sobre os meus desejos e anseios e sendo quem eu sou, sou considerado devagar, e outra pessoa fica com o que seria meu. Mas se eu proponho, demonstro, afirmo e faço concessões no meu modo de ser, sou considerado afobado e intenso, afugento o que era pra ser meu. Ora, se eu não faço nada, sinto-me completamente a mercê e me entristeço, pois tenho sentimentos que preciso atender.
Eurípedes oscilava entre a resignação e aceitação da solidão e o desejo ardente por encontrar a companhia última, que faria de sua existência comum a mais extraordinária de todas as existências.
Nessa gangorra de sentimentos, certa vez, imaginou que talvez o seu sucesso estava além das fronteiras geográficas. De pronto decidiu:
- Vou rodar o mundo. De certo o que procuro fala outro idioma.
Resoluto, conferiu o saldo bancário: encontrará apenas três reais e oitenta e três centavos. Sem se deixar abalar pelas cifras encontradas, alcançou o celular, abriu o navegador e digitou: como viajar o mundo sem gastar dinheiro. Para sua surpresa, milhares de resultados. Cliques e cliques mais tarde, uma única conclusão:
- Pota que parau, véi. Pra rodar o mundo sem dinheiro, precisa de dinheiro. Cê tá é doido.
Voltou a se questionar se talvez aceitar a solidão, assim como a calvície, não era o mais adequado.
Naquela mesma noite, enquanto esperava o doce abraço do sono, brilhou uma luz:
- Talvez o que eu procuro realmente não falei meu idioma. Só preciso ficar atento aos voos internacionais que tiverem como destino a cidade e, quem sabe, vou encontrar por aqui mesmo as voltas que o mundo dá.
Eurípedes se esquecera de uma coisa: vivia em uma cidade do interior, onde nem quem é de lá quer ficar. Quando um estrangeiro aparecia, era para fazer o que a maioria dos estrangeiros fazem: levar as riquezas da terra pra fora.
Alguns meses se passaram nesta luta diária de autoengano e autopiedade, mas nenhuma evolução acontecia. Eurípedes fez então o que relutara em fazer: apelou para o divino. Ajoelhado ao lado da cama, numa mistura de apreensão e clamor começou a rezar.
- Ôh meu Deus, eu não faço a mínima ideia do que eu tô fazendo. Minha vontade de verdade é que meu coração virasse um deserto, que nem o mais resistente dos extremófilos sobrevivessem. Não quero um coração gelado porque a Antártida tá aí pra provar que até o mais remoto recôndito frio da terra pode derreter, então se o futuro é o fogo, eu quero que meu coração queime. Não, Deus, não quero ser ruim para o próximo, apenas quero garantir que meu peito não doa com as dores do amor.
Eurípedes dormiu enquanto rezava. Como a muito tempo não acontecia, sonhou. Um senhor muito velho, com barbas longas, cabelos brancos, tão brancos, que quando a luz batia, ofuscava seu rosto, acompanhado de um jovem, cuja aparência a projeção sonhística de Eurípedes não conseguia distinguir, caminhavam em sua direção.
- Eurípedes, meu querido, que história é essa de querer que seu coração vire um deserto? No máximo, o que vai conseguir, é uma azia, hein? Brincou o jovem.
- Eu te conheço? Indagou Eurípedes, ao jovem.
- Bem, na teoria, deveria. Respondeu o jovem. Eu sou Deus.
- Ah tá, então minha cabeça escolheu uma aparência jovem pra Deus e colocou esse velho aí só de piada?
- Parece que sim. Respondeu Deus. Voltando a sua oração, meu querido, você, quando aparece que não é sempre, pede ajuda, fala que vai fazer isso que vai fazer aquilo. Coisa mais linda de se ouvir. Mas na hora do vamos ver, não sustenta. Eu criei o mundo em sete dias porque era mais fácil criar um mundo do que botar juízo na cabeça do ser humano, sem ferir o livre arbítrio. Tem que ter paciência, meu consagrado.
- Pô, Deus, falando assim eu fico até sem graça. Eu tô tentando, o Senhor vê que eu tô tentando.
- Vejo sim. Mas você tá tentando numa má vontade! Todo dia fala: amanhã eu começo a academia, amanhã eu começo a rezar mais, amanhã eu começo a comer bem. Mas nunca é hoje, é sempre amanhã. E quando o amanhã chega, às vezes até começa, mas não mantém. Lembra semana passada que você falou que iria começar a malhar novamente? Pois então, sua futura esposa tava lá. Mas você não foi. Eu tô tentando fazer o milagre, mas você não tá ajudando, meu filho.
- Aí eu perdi no argumento.
- A questão não sou eu querer. Eu quero ver todos bem, no caminho certo, felizes. Dotei vocês com todas as condições para que alcancem o que querem. De vez em quando eu tiro umas coisas ruins do caminho, aí vocês ficam bravos e colocam a culpa em mim. Me ajuda a te ajudar, meu companheiro.
Eurípedes acordou. A sensação era de que havia dormido uma semana, de tão descansado que levantou. Respirou fundo, levantou da cama, olhou-se no espelho e pensou:
- Paciência e atitude. Erros e acertos. Alegrias e tristezas. Sabedoria. A partir de agora, peço sabedoria. Saber a hora de agir e a hora de aquietar. Se não for essa a moral da história, Deus, o Senhor já vai me desculpando novamente.
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