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Dignidade

Não sou digno que a felicidade sorria para mim. Perceba que eu disse que não sou digno e não sou merecedor. É que a felicidade é fim último de todos e todos, sem exceção a merece. Mas ser digno de felicidade é diferente. Só é digno da felicidade aquele que possui bravura. É aquele que não tem medo dos nãos e das portas fechadas. Aquele que cria as condições ou, pelo menos, tenta criar os meios de atingi-la.  A felicidade é passiva. Você quem deve ir atrás dela e não esperar que ela aconteça. A felicidade se constrói enquanto se vive, não é um estado de graça, que uma vez atingido, permanece. Ela é como a própria vida. Ela até paira por nós, mas só de fato vive àquele que escolhe os próprios caminhos.  Só é feliz quem vive. Só vive quem é feliz. Os demais, se contentam com a efêmera sensação de ser feliz, só porque, num dia de céu claro, um leve sorriso foi visto no espelho.

Eus

Todos os dias eu acordo e a primeira coisa que me vem a cabeça é: café. Até pouco tempo atrás, sempre me vinha uma outra pessoa na cabeça, e por mais que fosse espontâneo e inteiramente nascido de mim, na maioria das vezes me era um fardo, um peso, porque eu imaginava que meu relacionamento dependia exclusivamente da minha capacidade de demonstrar que em primeiro lugar vinha a pessoa e só depois do meu ato de “devoção” eu me preparava para o dia que viria.

Eu me obrigava a ter, todos os dias, criatividade pra enviar a mensagem de bom dia única e memorável e embora na maioria das vezes eu conseguisse a eloquência das palavras, deixou de ser interessante, afinal de contas o conteúdo era novo, mas o ato em si, ao repetir-se todos os dias, deixou de ter o efeito interessante que possuía quando era novidade ou surpresa.

Eu era tão bom e submisso ao outro, que às vezes se tornava sufocante, não abria espaço para a saudade e em muitas ocasiões fazia com que a outra pessoa não se sentisse suficiente, afinal de contas eu era tão empenhado e dedicado que não havia muito a se fazer para se equiparar aos meus gestos e aí, a pessoa se sentia mal por não dá a mim tudo aquilo que eu dava a ela.

Tudo isso porque eu não queria ser só e me submetia a situações que me machucavam e me calava porque eu não podia me dar ao luxo de perder aquela pessoa. Dessa maneira fui criando um muro dentro de mim. De um lado desse muro, se encontrava o meu eu, aquele indivíduo interessante que todos conheciam, do outro, estava o eu que se moldava à quem quer que fosse que estivesse comigo e não se permitia de maneira alguma sentir raiva, tristeza e nem sequer cogitar interromper os ciclos que me causavam dor.

Em alguns momentos, o eu interessante, gritava com tanta força que incomodava o eu submisso, a ponto de abalar algumas convicções e plantar algumas sementes de insatisfação. Mas a submissão era mais forte porque nascia do medo. Medo da solidão, medo de ser abandonado, medo de não ser feliz, porque acreditava que a felicidade dependia exclusivamente da presença de um outro, mesmo que esse outro oferecesse só migalhas.

Esse eu submisso era extremamente otimista porque acreditava que, qualquer que fosse a situação incômoda, era temporária e justificada, afinal de contas eu estava me relacionando com outro ser humano, que havia tido experiências ruins e só não sabia demonstrar bem o que sentia e logo que se desse conta que eu era diferente, a relação seria a coisa mais maravilhosa que ambos já sentimos.

Pobre eu. Vivia das ilusões que criava. E criava bastantes ilusões. Em cima dessas histórias inventadas, criava altas expectativas, sem sequer imaginar que não chegariam nem perto de serem atendidas, afinal de contas, eram todas criadas em cima das mentiras que o próprio eu criava para si mesmo.

O muro entre o eu interessante e o eu submisso começou a se tornar uma prisão. Se o eu interessante aparecesse como era, sem se moldar ao outro, era o fim, pensava o eu submisso. E por isso ele se esforçava mais e mais para ter o controle, para ser ainda melhor para o outro, de modo que nem sequer fosse possível vislumbrar um pouquinho do eu interessante.

Coitado. Não percebia que quanto menos interessante fosse, menos chamaria atenção e menos despertaria os sentimentos que ele queria despertar. Ao prender a si mesmo na prisão da submissão, prendeu junto os sentimentos que o levaram a estar com a pessoa num primeiro momento.

Até que o fatídico dia chega. O dia que a outra pessoa cansa e põe fim ao martírio: “Está tudo acabado entre nós. Você é ótimo, mas não serve para mim, porque não consigo te dar de volta tudo isso que me oferece”.

Como assim sou ótimo e você tá me deixando? Era tudo o que ele conseguia pensar. Como havia colocado a pessoa em um pedestal, ainda tentava justificar: “Era muito para o meu caminhãozinho, de certa forma, eu sabia que essa hora iria chegar”. “Ela era tudo de bom e o que eu tinha a oferecer além de mim mesmo?”.

O eu interessante que estava preso começava a ser liberto, mas o eu submisso, logo que livre das obrigações do relacionamento, se punha a procurar por uma nova pessoa a quem ele poderia se dedicar de corpo e alma. Logo ele adormecia e o eu interessante começava aparecer aos poucos, despertando a atenção de algumas pessoas, arrancando sorrisos e criando sentimentos.

Assim que se via “enamorado”, o eu submisso aparecia e pouco a pouco ia criando os muros novamente até aprisionar novamente o eu interessante dentro de si e começar tudo de novo. Não via a repetição dos erros e esperava que o resultado fosse diferente.

Se você leu até aqui, se pergunta: “Onde estavam seus amigos? Sua família?”. A resposta é simples: estava presa dentro do muro junto com o eu interessante. O eu submisso justificava que, como só eu e a pessoa vivemos nosso relacionamento, ninguém que tá de fora tem autoridade ou entendimento pra dizer como as coisas deveriam ser e que o excesso também faz mal.

O amor é cego. Diz o ditado, e talvez seja mesmo cego. Cego às aparências, afinal de contas, encantamo-nos pelas atitudes, pela forma como nos tratam e pelo que demonstram por nós. Sob a justificativa de amar, tornamo-nos cegos às atitudes e olhamos só para o que parece. E o que parece é bom, afinal, maquiamos a realidade para que ela nos seja agradável e mantenha nossa versão interessante presa dentro de nós mesmos.

E chega o dia, mesmo que lentamente, em que os eus se encontram. O eu interessante tira forças de onde não tem, transpõe a barreira e trás para a prisão o eu submisso. Agora ambos estão presos e aquele eu conhecido por todos deixa de existir. Aparece o eu desinteressante, cabisbaixo e triste. Conformado com as mazelas da vida e incrédulo de que as coisas possam ser minimamente agradáveis.

Quando esse eu aparece, nem existe mais relacionamento, apenas um casal adiando o fatídico fim. Um porque não tem forças para vencer o medo da solidão, o outro, com medo de partir um coração, que sem ele notar, já está partido. E assim vai seguindo dias e dias de completo desinteresse e puro tanto faz.

Enquanto esses dias espinhosos de tédio, tanto faz e desinteresse vão passando, internamente os eus vão travando batalhas, tentando ter o domínio da situação, enquanto o eu que se encontra no comando só consegue pensar: “Tanto faz se fico ou se vou, tanto faz se gosta ou não gosta, se quiser ir tudo bem, já não faço mais questão”. E é aí que surge o diálogo entre os eus:

Eu interessante: - Tu é cego? Não vê a que situação você trouxe a gente? Tantas qualidades, tantos sonhos, tantos talentos que nós temos e você joga tudo fora assim?

Eu submisso: - Ah, então agora a culpa é minha? Você não era todo bonzão? Por que foi que saiu e me deixou entrar? Cadê aquela confiança toda que você tinha? Faça-me o favor, nunca tivemos esse tanto de qualidade não, tivemos sorte por alguém ter se interessado por nós!

Eu interessante: - Você tá me sacaneando seu filha da puta?

Eu submisso: - Você é tão cheio de si, que no primeiro sinal de que ela poderia ir embora você já começou a cambalear. Filha da puta é você, óh, bonzão!

Eu interessante: - Eu, eu, eu... Só quis me tornar mais interessante, afinal de contas, eu sentia algo e não gostaria de perder esse algo por simplesmente não abrir mão de algumas coisas.

Eu submisso: - Pois então você errou feio! Abriu foi mão de tudo, não aguentou a pressão e agora eu tive que segurar a bucha.

Eu interessante: - Olha no espelho, seu desgraçado! Somos bonitos, inteligentes, dedicados, trabalhadores, honestos, capazes. Você aparece e joga tudo isso aí fora. E por quê? Quando abri espaço pra um novo eu aparecer, era um eu que soubesse dosar, que tivesse equilíbrio, não esse pamonha que apareceu aí.

Eu submisso: - Agora a culpa é minha. Vai se lascar meu camarada. Tu fica aí apontando dedo, com autopiedade. Sabe do que eu preciso? Acolhimento, respeito, cuidado. Busco isso em outra pessoa porque você só sabe apontar defeito, julgar, culpar. Se você fizesse o que eu faço pelos outros por você mesmo, nada disso estaria acontecendo. Pelo menos não desse jeito. E isso porque você enche a sua bola pra falar que é o bonzão. Ai ai, tu e eu somos a mesma coisa: dois trouxas em um só.

Nesse ponto, a relação termina, finalmente. Já não se sabe mais quem está no comando. O eu desinteressante também se foi, dando lugar ao eu que se culpa e assume toda a responsabilidade pelo fracasso, na esperança de que, assim, na próxima relação ele terá o controle da situação e evitará os erros passados. Ledo engano.

Até que todos os eus se juntem num só e não meçam esforços para fazer de todos apenas partes equilibradas de um sistema uno, os ciclos irão se repetir com maior ou menor intensidade. Até que todos vejam em si mesmos o objeto passível de ser amado como se fosse um outro ser humano, haverá alternância entre quem comanda os atos do corpo e da mente.

E foi só depois dessa união e de uma viagem áspera e dolorosa com destino a si mesmo, viagem essa que é contínua e profunda e que requer cautela, paciência, dedicação persistência e muita preparação, só após se soltar de amarras que seguravam pra evitar uma queda, mas prendia no mesmo lugar: o medo, só depois de alinharem os objetivos em torno de um só, foi só assim que as coisas começaram a mudar.

Mas como eu ia dizendo, a primeira coisa que eu faço ao acordar é tomar meu café. O dia só começa depois de uma boa xícara de café, alguns minutos olhando para o nada, com a cabeça completamente vazia de qualquer coisa que seja. Só depois disso é que o corpo vai está preparado para enfrentar os altos e baixos que o dia tem a oferecer. Sempre tentando encontrar algo bom em meio as tempestades e tentando não surtar com o estresse que o convívio humano oferece de brinde.


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