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Dignidade

Não sou digno que a felicidade sorria para mim. Perceba que eu disse que não sou digno e não sou merecedor. É que a felicidade é fim último de todos e todos, sem exceção a merece. Mas ser digno de felicidade é diferente. Só é digno da felicidade aquele que possui bravura. É aquele que não tem medo dos nãos e das portas fechadas. Aquele que cria as condições ou, pelo menos, tenta criar os meios de atingi-la.  A felicidade é passiva. Você quem deve ir atrás dela e não esperar que ela aconteça. A felicidade se constrói enquanto se vive, não é um estado de graça, que uma vez atingido, permanece. Ela é como a própria vida. Ela até paira por nós, mas só de fato vive àquele que escolhe os próprios caminhos.  Só é feliz quem vive. Só vive quem é feliz. Os demais, se contentam com a efêmera sensação de ser feliz, só porque, num dia de céu claro, um leve sorriso foi visto no espelho.

A Morte

Há algum tempo a minha luz havia se apagado. Durante um período da minha vida, eu apenas existi, não vivi, ao ponto que, após um tempo de reflexão, cheguei a conclusão que a minha existência e o nada não fariam diferença no mundo. Eu me destacava na empresa, mas não era reconhecido e valorizado. Meus amores, todos ruíram. A minha família não se importava muito com quem eu era e o com o que eu sentia. Meus amigos se esqueciam de mim.

Diante dessas situações, acabei decidindo por findar com a minha existência. Não queria de modo algum o melodrama e a apoteose de uma corda no pescoço, um disparo na cabeça ou o show de me jogar da ponte. Seria tranquila e indolor a minha partida. Pus-me então a pesquisar por comprimidos, venenos e substâncias que poderiam resolver essa questão. Então encontrei.

O meu ritual consistia em chegar em casa, encarar a caixa contendo a minha passagem para o além e chamar a morte. Nos primeiros dias eu gritava por ela, ao passo que não sendo atendido, fui abaixando o tom, até que me peguei sussurrando o nome dela: Moooooorteeee! Nesse dia, um vento frio soprou na janela, me assustei e acordei do devaneio e voltei a minha monótona rotina diária.

No dia seguinte estava marcada a data. Sem avisos, sem despedida, sem carta, apropriei-me da caixa contendo a chave para meu último refúgio, quando a minha campainha tocou. Guardei novamente a caixa e fui até a porta e lá estava ela: a morte, em pessoa! ou em entidade, não sei bem como definir. Estava de sobretudo preto, capuz e a foice, que brilhava quando a luz por ela passava. Não amedrontava como eu imaginava que iria. Também não ameaçava. Parecia impaciente.

- Me chamou? - Ela perguntou, me encarando.
- Quem é você? - Perguntei.
- A Morte! Com M maiúsculo. Quê que foi? Mudou de ideia?
- Bem... Eu não esperava que viesse em pessoa. Achei que eu iria apagar e acordar num lugar desses aí que se acorda quando morre.
- Então você ainda quer morrer? Ela perguntou enquanto se sentava no meu sofá.
- Huuum... É... você não me parece tão ruim. Mas assim, te vendo agora de perto, não tenho tamanha certeza.

Enquanto falava com a Morte, com M maiúsculo, não se pode esquecer, a minha vida toda passou diante dos meus olhos. A sensação de vazio ainda pairava sobre mim. Ainda havia a certeza de querer partir, mas agora somado com a curiosidade. Será que todos aqueles que decidiram acabar com a própria existência deliravam antes do fatídico momento? Era já uma alucinação do comprimido? Eu estava ficando louco?

- Não. Isso não é delírio, você não está sonhando e nem é louco. Talvez só esteja deprimido. Os deprimidos sempre me chamam. Ela disse enquanto ligava a TV.
- Você lê pensamentos? Indaguei, confuso.
- Até que leio, mas depois de anos nessa profissão, nem precisa, muitas dessas perguntas são bem comuns.
- Por que está aqui? Perguntei, incisivo.
- Bem, eu estava olhando a minha agenda, tinha um compromisso na casa do 301, sabe, o senhor Armando já passou do tempo, era ele ou Betinha da Inglaterra, mas o chá dela é bem melhor que o dele, então estava me preparando para o último compromisso do dia e voi là, seu nome apareceu na lista. Aí puxei a papelada, olhei os arquivos e pronto: você tá me chamando tem uma semana ou mais. Isso dá trabalho, é uma burocracia, então volta e meia eu apareço pra conversar um pouco para aqueles que me fazem fazer hora extra. Hoje não era seu dia, então, você foi o contemplado da vez.
- Vai tentar me convencer que eu não devo morrer. Que a vida é bonita e eu tenho que aproveitá-la? É isso?
- É e não é. A vida é um saco, todo mundo sabe disso. Tem dia que até eu quero morrer, mas sou imortal, então vou só fazendo a minha arte. Inclusive, salvo mais do que ceifo.
- E qual o propósito da visita?
- Vou só te mostrar umas coisinhas, se ao final você ainda quiser morrer, aí é comigo mesmo!
- Mostrar o quê?
- Foi só retórica. Vou falar sobre algumas coisas, você reflete e aí se chegar a conclusão que é isso mesmo, eu faço o trabalho, senão, eu vou embora sem papelada a preencher e todo mundo fica feliz.
- Tá. Sou todo ouvidos.

- Bom, pra começar, você quer morrer porque sente que a sua existência é indiferente para a sociedade, porque se sente só e as pessoas não lhe dão o valor que você merece. Por um lado, isso pode ser o desequilíbrio químico do seu cérebro, o que vocês chamam de depressão, por outro, pode ser uma dificuldade de se enxergar a vida por outras perspectivas. A respeito da indiferença da sua existência, vou ter que discordar, amigo. E ilustro a discordância com o seguinte:

  1. Sabe aquele senhor, morador de rua, que você sempre deseja bom dia e sorri pra ele? Pois é, dentre todas aquelas pessoas que passam por ele, você é uma das poucas que o notam, que sorri e ainda bate papo. Nos dias em você não trabalha, ele sente a sua falta e se preocupa. Só não tem como lhe contatar. O dia dele é impactado pela sua presença.
  2. Sabe a moça da recepção que sempre desvia o olhar quando você entra? Ela é apaixonada por você, mas como você não dá muita trela - e não dá por não confiar em si mesmo - ela acaba fingindo que não sente nada, embora ela conte o tempo para te ver. O simples fato de olhar pra ela, muda o dia inteiro dela. Pense nisso.
  3. Sabe aquela caixa do supermercado que você sempre conta a mesma piada? - Não sei como ela aguenta, você vai lá todo dia e é sempre a mesma piada ruim - ela não tem tido bons momentos em casa, se sente invisível, é maltratada o dia todo por clientes chatos, mas ela espera a sua piada porque pra ela, significa que alguém a nota e pelo menos tenta fazê-la sorrir. E se você lembrar bem, vai recordar que fez a piada a primeira vez porque notou nela um semblante de choro.
  4. Sabe aquele menino que você sempre passa e bagunça o cabelo e que volta e meia te enche de perguntas? Por saber que você é um engenheiro e teve que estudar muito pra conseguir trabalhar com a construção de foguetes, ele se esforça na escola, dá o máximo de si (dentro dos limites que a infância o permite) e inspira os colegas a fazerem o mesmo.
- Eu poderia listar mais pessoas, pessoas essas que você quase não dedica seu tempo, imagine aquelas que absorvem você por osmose. A questão é que você espera que a vida lhe dê algo, que as pessoas demonstrem, que reconheçam e valorizem. E sim, é muito bom quando isso acontece. Mas e você? Quanto tem feito por si mesmo? Quando é que você foi ativo e fez a vida acontecer? Só ficou esperando que caísse sobre você as maravilhas das relações humanas. E a espera sem retorno cansa. O cansaço frustra. E a vontade de sumir vai aumentando. A verdade é que vocês pouco notam a diferença que fazem, porque muitas vezes estão olhando para o lugar errado. Sempre pra fora, quase nada pra dentro. E mesmo pra fora, focam naquilo que incomoda e não no que floresce. Mas já falei demais. E aí, ainda quer morrer?
- Eu não tinha parado pra olhar a vida por esse ângulo. Acho que não quero mais morrer.
- Agora é tarde, amigo. Pegue o comprimido. Cansei. Engole logo pra eu poder fazer minha parte.
- Mas eu mudei de ideia. Não quero mais, vou jogar fora.
- TOME logo! Se não tomar, morrerá por outros meios. Vai dá trabalho alterar a papelada, mas eu dou meus pulos.

Pego a caixa. Tremendo, encho o copo de água. Olho para a Morte, com M maiúsculo, incrédulo, esperando que me faça desistir. Se iria acabar assim, porque todo aquele discurso? Fetiche? Então coloco o comprimido na boca. Respiro fundo. Engulo.

A Morte começa a rir. 

- Você deveria ter visto a sua cara, cara!
- O que foi? Não vou morrer?
- Não. Quando você comprou o comprimido, confundiu os nomes. Isso é comprimido pra gases. O que mata tem outro nome!


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